terça-feira, 17 de novembro de 2015

BOCÃO – PARTE 2 – AS 4 QUILHAS

Colocando alguns pingos nos “iiiis”

Ricardo Bocão já foi protagonista de uma postagem deste blog, em julho de 2014. Aqui vamos falar especificamente de sua invenção em design, as pranchas de 4 quilhas.

REPRODUÇÃO DA ABERTURA DE MATÉRIA DE AUTORIA DO FOTÓGRAFO BRUNO ALVES PUBLICADA NA FLUIR NÚMERO 3, NO INÍCIO DE 1984

Bocão teve o insight para inventar as pranchas de 4 quilhas em 1981. Minha ideia para fazer esta postagem surgiu ao reler na mais nova Fluir, a edição de aniversário, na qual saiu publicada uma matéria que fiz com a entrevista de Penho (Carlos Eduardo Siqueira Soares), para o projeto de pesquisa do meu livro. O editor chefe, Adrian Kojin, viu um teaser neste blog, em uma postagem sobre Saquarema e me solicitou que desenvolvesse um texto especial, mais abrangente. A matéria saiu com 14 páginas e certamente seria impossível colocar todas estas informações, tanto da matéria na Fluir, como os detalhes apresentados aqui neste blog, no livro. Ambos, Penho e Bocão, foram pioneiros e instrumentais no desenvolvimento dos designs.
O insight para fazer esta postagem (e o título) veio do fecho da introdução que Adrian preparou:

REPRODUÇÃO DA INTRODUÇÃO DA MATÉRIA SOBRE PENHO
CLICK E AMPLIEM QUE É POSSÍVEL LER
PENHO 
ABERTURA PUBLICADA NA FLUIR DE OUTUBRO 2015
EDIÇÃO DE 32 ANOS
FOTOS DO ARQUIVO PESSOAL DE PENHO;
TITO ROSEMBERG (ARPOADOR) ; FEDOCA (PÍER)

CAPA DA EDIÇÃO DE ANIVERSÁRIO
JOHN JOHN FLORENCE, TAHITI
FOTO: DOMINIC MOSQUEIRA

Voltando ao assunto principal deste post, as 4 quilhas de Ricardo Bocão, coloco abaixo mais um trecho da grande entrevista que fiz com Bocão, na sede do Canal WooHoo, em maio de 2013. Fiz edições mínimas, resguardando a espontaneidade com que ele me contou esta história. Bocão ainda está preparando um livro, com Marcelus Viana do Canal Off, trazendo a história completa das Quatro Quilhas.

 BOCÃO E SEU QUIVER DA TEMPORADA 1981 \ 1982
SUNSET PARKING LOT
FOTO: PAUL COHEN
REPRODUÇÃO DA VISUAL ESPORTIVO Nº 14

Com a palavra, Bocão, colocando outros pingos nos Is:
“Inventei as pranchas de 4 quilhas em maio \ junho de 1981, logo depois que o Simon Anderson apareceu com as pranchas de 3 quilhas (Thrusters). A história do Simon Anderson é muito simples e a história das 4 quilhas também é muito simples. Simon Anderson inventou a 3 quilhas, ou melhor, apareceu para o mundo com a 3 quilhas a primeira vez na Semana Santa de 1981, em Bells Beach. E chocou ao ganhar o campeonato em Bells com 15 pés de onda, usando um modelo de prancha diferente.

O que que o mundo surfava na Semana Santa de 1981, quando ele ganhou Bells?
Biquilhas.
Todo mundo usava as biquilhas que Mark Richards havia recriado em 1979. De 78 para 79. MR começou a dominar o circuito mundial, ganhou quatro títulos seguidos. No meio desse processo, no início de 1981, ou até no ano de 1980, quando começou o terceiro ano do domínio dele de biquilha... Lembre que todo mundo surfava de biquilha (a não ser no North Shore – mas isso era para ondas grandes). Tinha um ou outro surfando de single fin, o Cheyne Horan era um rebelde, mas todo mundo usava biquilhas. Eu, você... Para o surf hot dog e até um pouquinho maior, todos usavam biquilhas. Essa era a prancha comum.
Veio o Simon Anderson e ganha Bells, que quebrou pequeno, médio e depois veio aquele swell de 15 pés. Ele de triquilha. E todo mundo: ‘Uau, que prancha é essa?!!’ Ninguém tinha visto.
E três semanas depois ele venceu o Coke, em Narrabeen. Ninguém pode negar que a aceitação imediata das 3 quilhas veio por conta disso. Ele vai lá e venceu Bells em ondas de 15 pés e semanas depois, na mesma perna do circuito mundial, de costas para a onda, em ondas pequenas, ele venceu o Coke, em Sidney. Foi uma febre. Imediata, instantânea.
E aí, o Valdir Vargas que estava lá, na Austrália, sai de lá, passou por Bali para pegar umas ondinhas e chegou no Brasil com uma McCoy de 3 quilhas. No meio de 1981 ele chegou com a primeira 3 quilhas no Brasil.

O Penho trouxe a primeira mini model para o Brasil, eu acho que o Valdir chegou aqui com a primeira triquilha. Eu tenho certeza. Fica faltando alguém provar que não foi. E lembre-se, que em 1981 não havia internet, surf na TV, a informação não corria tão rápida. A informação era boca a boca. A Visual Esportivo, que era a única revista, demorava dois meses para sair. Quando ela saia tinha assuntos de quatro meses atrás. E a Surfer americana idem, que chegava aqui de navio.
Então, quando o Valdir chegou com a 3 quilhas aqui, ninguém nem sabia direito o que estava acontecendo.

Nessa época eu shapeava para umas 4 a 5 pessoas, Ismael Miranda, Rosaldo Calvalcanti, Gironso, Fernando Bittencourt e eventualmente para Moisés Levy e Rodolfo Lima (meu time eram estes quatro primeiros surfistas, depois três, pois o Fernando foi para o Daniel Friedmann). Com o Rosaldo Cavalcanti, que já era um cara antenado, novinho, a gente já havia ouvido falar dessa história das 3 quilhas, mas aí o Rosaldo chegou dizendo que o Valdir havia chegado no Brasil com uma prancha destas e falou para mim: ‘Eu quero uma, vamos pedir emprestada a dele para você copiar’. Eu liguei para o Valdir, passei lá e peguei.
Na ida para a oficina da Brazilian Dreams, eu shapeava lá, o Capacete (Ítalo Marcelo), também shapeava lá, eu não tinha oficina. Era uma oficina de laminação onde tinham diversos shapers. Na ida o Rosaldo fala assim: ‘Vamos dar uma surfadinha’; só para sentir a prancha. Eu achei a prancha uma merda, achei ela dura. Ela era reta, sem V Bottom, era uma daquelas needle nose, com rabeta larga. Um squash largão e o fundo era flat. Uma prancha dura, com a borda box, assim... (Bocão mostra a borda com a mão). Eu achei horrível. Falei para o Rosaldo e ele. ‘Não quero saber, quero que você me faça uma igualzinha’. Tá bom. Vou fazer uma igualzinha para você.
Eu saí da água. E uma das coisas que eu achava que deveria fazer, antes de entrar no carro para ir para a oficina, eu virei a prancha e coloquei ao lado da minha biquilha. Eu havia levado a minha prancha, surfei um pouquinho com as duas. Eu virei assim a minha prancha e virei a triquilha. As pranchas de fundo para cima, com as quilhas e botei elas lado a lado, me afastei um pouquinho e fiquei olhando. Eu só queria olhar, o fundo de uma, fundo da outra, as quilhas... As quilhas da minha e as quilhas da McCoy e numa dessas, quando eu virei as quilhas, EU VI – duas quilhinhas atrás.
EU VI. Já li sobre isso, a maioria dos inventores, da lâmpada, do dínamo, eles foram pensados, concebidos na cabeça dos caras, antes de fazer. O cara viu um dínamo funcionando, depois ele foi atrás fazer. Thomas Edison viu a lâmpada funcionando e depois foi procurar como fazer. Não todas as invenções, mas algumas o cara concebeu antes.
Eu já havia tido uma porrada de ideias e os caras brincavam comigo, que eu botava outline de rabeta no bico, eu estraguei várias pranchas antes disso. Eu tinha essa particularidade, ficava tentando inventar coisas diferentes. Eu insistia em surfar com pranchas horríveis. Algumas eu realmente estraguei. Eu não era de fazer o que todo mundo faz. Meu estilo de vida era totalmente diferente. Eu já praticava esse tipo de coisa. Uma constante busca por uma coisa nova. Fui ligando as coisas na mente e falei ‘Caraca, Rosaldo, tive uma ideia’. E ele, ‘Não vem não, eu quero minha prancha desse jeito’, mas eu cheguei na oficina e a primeira coisa que eu fiz foi fazer a minha 4 quilhas.
Coincidente eu tinha uma 5’8”, que seria uma biquilha que já estava laminada de um dos lados, com uma pintura daquelas geométricas da época, prontinha. Ela só não tinha as quilhas. Eu me lembro como se fosse hoje. Quando eu cheguei lá a prancha estava no cavalete, pronta para colocar as quilhas e já estava com as duas quilhas com aquele tape (fita crepe) para fixar na posição. Faltava dar o roving e laminar dos dois lados. Dar o hot coat embaixo e fixar as quilhas. De fato, era laminar as quilhas e dar o hot coat no fundo. Eu falei – para aí. Me dá uma quilha, peguei um papel e desenhei uma quilha grande de biquilha normal, cortei três dedos da base. Falei: ‘Faz duas quilhas dessa para mim, urgente’. Na época tinha aquelas bandejas de quilhas que o cara cortava várias. Quando ficaram prontas fui colocar com o laminador, onde eu achava que era para coloca-las.
 RÉPLICA DA CRIAÇÃO DE BOCÃO DO ACERVO DA ALMA SURF
ROMEU ANDREATTA ME CONVIDOU PARA FAZER A CURADORIA DE 50 RÉPLICAS DE PRANCHAS HISTÓRICAS DE DIFERENTES SHAPERS
A QUATRO DE BOCÃO FOI UMA DAS ESCOLHIDAS
FOI FEITA POR RICARDO MARTINS, NA OFICINA DA WET WORKS
COM AS MEDIDAS FORNECIDAS POR BOCÃO


FOTOS: DRAGÃO – FESTIVALMA 2009

Simples meu irmão. Se eu vi duas quilhas atrás, elas deveriam ser na mesma direção e no mesmo ângulo e também na mesma distância da borda, só que um pouco mais para trás. Exatamente paralelas. O que eu tive de decidir ali era o quão para trás eu deveria coloca-las. Fixei e mandei laminar. Aí começou.
Começou a zoação. Geral. De todo mundo. E não parou mais durante dois anos. Que eu me lembre não teve um, a não ser o Joca Secco, que foi o único que chegou para mim e falou: ‘Pô, essa prancha tá andando rápido, hein?’
Eu peguei essa prancha e estreei ela num dia de ondas boas atrás do Pontão no Arpoador e a característica dela ficou clara, logo de início, que era a velocidade. E o Arpoador era bom para isso. Eu nem manobrei tanto. A quatro quilhas tinha a mesma soltura da biquilha só que com mais drive. Mais pressão. Mas 99% das pessoas achavam que eu estava querendo aparecer. A força das pranchas de 3 quilhas era avassaladora. É óbvio que o impacto do meu negócio iria ficar amortecido.
Isso foi em junho, eu resolvi que eu ia colocar um anúncio na Surfer e na Sunfing, em preto e branco. Era US$ 1.500 cada um, cheguei até a escrever uma carta para perguntar sobre preços. Eles me responderam. Seria um anúncio assim: 4 QUILHAS – RICARO BOCÃO, só para registrar.  Aí já era agosto para setembro de 1981, quando recebi a resposta deles. E aí eu pensei: ‘Quer saber, vou gastar 3 mil dólares, para colocar dois anúncios...’ Com estes 3 mil dólares eu vou para o Hawaii, vou entrar no Pro Class Trials, tentar entrar no campeonato de Sunset e no Pipeline Masters, vou levar só um quiver de 4 quilhas e empurrar este modelo goela abaixo dos caras. Os caras vão ter que ver. E foi o que eu fiz. Juntei o meu dinheiro que eu usaria no anúncio, fui para o Hawaii, com um quiver de 4 quilhas: 5’8”, 6’8” e duas 7’4”. Eu tinha duas dessas maiores. Até o Picuruta utilizou uma com seda da Gledson emprestada. Eu ainda tinha uma 7’10” do BK – Barry Kanaiaupuni e uma 9’4” (ambas monoquilhas) e este era o meu quiver.
Dali eu fiquei dois anos usando 4 quilhas em tudo. Fui para a África do Sul duas vezes. Os dois primeiros OP Pros da Califórnia em 1982 e 1983 eu surfei de 4 quilhas. No Festival Olympikus eu fiquei em nono duas vezes. Perdi nas duas vezes apenas para o campeão. Para o Luís Neguinho no primeiro e para o Picuruta no segundo, mas passei as triagens, disputei o primeiro homem x homem, que era os Back 14 e também a segunda rodada (Top 16) e fiquei em nono. Usando só 4 quilhas.
A única coisa que mudou é que no meio desse caminho eu fiz algumas pranchas com aquele ‘bico de pato’. Aí todo mundo achou que não deu muito certo, mas foram estes bicos. Os bicos de pato foram apenas um pedaço dessa história. Isso durou só quatro meses. Mas, em um período de dois anos, cheguei a fazer umas 45 a 50 pranchas de 4 quilhas. E mesmo em ondas de bom tamanho no Hawaii eu surfei com a 4 quilhas.”

TESTANDO SEUS DESIGNS NO NORTH SHORE EM 1983
FOTO: PAUL “GORDINHO” COHEN

ABERTURA DAS MATÉRIAS SOBRE SEU DESIGN NAS REVISTAS BRASILEIRAS
VISUAL ESPORTIVO NÚMERO 14, DE 1984

FLUIR NÚMERO 3, TAMBÉM DE 1984

 VENICE MAGAZINE DE JUNHO DE 2008
MATÉRIA DE KIKO CARVALHO
(repare nas “bicos de pato”)
FUI CONVIDADO PARA ESCREVER UM BOX AO FINAL
FORAM 8 PÁGINAS USANDO A MATÉRIA DA VISUAL COMO PANO DE FUNDO




CAPA DA VENICE NA QUAL SAIU ESTA MATÉRIA


RECORTE DE UMA PÁGINA DUPLA DA FLUIR NÚMERO 3
ISMAEL MIRANDA, TEAM RIDER DO BOCÃO, É O SURFISTA GOOFY

REPRODUÇÃO DA VISUAL ESPORTIVO

 REPRODUÇÃO DA FLUIR NÚMERO 4
TEXTO ASSINADO PELO SHAPER ALEXANDRE MORSE
PAULO ISSA LAMINANDO UMA 4 QUILHAS NA SQUALO

FERNANDO MURRINHA, PIONEIRO DO SURF NORDESTINO
ESTA 4 QUILHAS ELE FEZ COM BASE NA MATÉRIA DA VISUAL ESPORTIVO
INÍCIO DOS ANOS 80
FOTO: CLÁUDIO MARANHÃO
  
Esta segunda postagem, tendo Ricardo Bocão como protagonista neste blog, com certeza não será a última. Ainda guardo um trecho da entrevista que fiz com ele, explicando o pioneirismo em termos de patrocínio, que merece um destaque especial. Saibam, que neste quesito, os brasileiros também fizeram ANTES que australianos e norte-americanos. Minha pesquisa continua e trarei depoimentos de Cauli e outros de nossos primeiros pros.

Na verdade, este blog não vai parar de trazer as histórias que causaram impacto na evolução do surf brasileiro. Esta atitude pioneira de Bocão estará no seu capítulo como ícone de nosso surf e também deve ser abordada quando falamos do desenvolvimento de pranchas por brasileiros. O design de pranchas nacionais que pode começar com as madeirites de Irencyr Beltrão, passando pelas mini models de Penho (que inclusive as introduziu no Peru – leiam a matéria na Fluir – N. #360 – OUT 2015), culminado com os designers atuais, as máquinas de shape de Luciano Leão, espalhadas pelo planeta. O modelo de máquina desenvolvido por Avelino Bastos, que puxa duas pranchas de forma concomitante e traz outros avanços que facilitam a vida dos shapers, aos foguetes que Marcio Zouvi, Johnny Cabianca e Xanadu fazem para Filipinho, Medina e Caio Ibelli destroçarem as ondas do Tour...

Todos estes assuntos serão abordados no livro “A GRANDE HISTÓRIA DO SURF BRASILEIRO”, que tem seu lançamento programado para 2016.

VEJAM DETALHES NO SITE: WWW.HSURFBR.COM.BR

Para conhecer um pouco mais sobre a história de Ricardo Bocão:




2 comentários:

  1. Como todo gênio, bocão não foi compreendido por descriminação e porque poucos são capazes de enchergar o que há no amanhã ou seja visionário, mas é impressionante sua vontade de provar que sua criação estava mais além do que sua época, tenho orgulho de ter experimentado um modelo quadri na década de 80, parabéns bocão.

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  2. Como todo gênio, bocão não foi compreendido por descriminação e porque poucos são capazes de enchergar o que há no amanhã, ou seja ser um visionário, mas é impressionante sua vontade de provar que sua criação estava mais além do que sua época, tenho orgulho de ter experimentado um modelo quadri na década de 80, parabéns bocão, muito respeito.

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